Apesar da bandeira vermelha cobrir quase todo estado, as normas do governo são básicas e bem mais leves do que as decretadas no início da pandemia, em março.
“Isso aí todo mundo vai pegar, né?”, diz o zelador Marivaldo Santana Alves, de 40 anos, enquanto esperava na quinta-feira (26) atendimento na Unidade de Pronto Atendimento (UPA) do Continente, em Florianópolis. Alves relata ter ficado dois dias sem conseguir caminhar. “Foi uma fraqueza nas pernas e eu achei que eu ia cair no chão. Agora que consegui sair da cama, vim pra UPA fazer o teste, mas eu já sei que é. Todo mundo lá no prédio já pegou. Chegou a minha vez”, conta.
No mesmo dia, um homem corria de dentro de um supermercado da Praia do Campeche em direção a um grupo para anunciar que tinha conseguido entrar no estabelecimento sem máscara. Nas mãos dele, havia um saco de gelo que depois foi acomodado entre bebidas no carro com placa de Belo Horizonte e selo de uma locadora. O grupo de turistas, que não aceitou falar com a Folha, seguiu em direção à praia, alheio à pandemia e às medidas de restrição.
“As pessoas perderam o medo. Eles bebem até a madrugada, as praias estão lotadas. Está tudo funcionando normalmente, tudo liberado”, diz Giulia Dado, 23, que é atendente de uma loja de utilidades. “Eu não peguei a Covid ainda, mas está chegando perto da minha família. Com esse último surto, minha tia e minha prima se contaminaram”.
Já Alzira Rosa, 53, foi contaminada no início da pandemia e ficou 15 dias intubada. A professora de Educação Física de São José, na Grande Florianópolis, se diz perplexa com a forma como a população tem encarado a doença. “É falta de bom senso das pessoas, falta de empatia. Desculpe o desabafo, mas todos os dias são novos casos, novas mortes”, diz.
Hoje, 13 das 16 regiões de Santa Catarina estão em risco altíssimo risco de contaminação. As outras três estão sob grave risco. São 26.890 casos ativos da doença, o maior número desde o início da pandemia. A taxa de ocupação de leitos do SUS exclusivos para adultos chegou a 88%.
Apesar da bandeira vermelha cobrir quase todo estado, as normas do governo são básicas e bem mais leves do que as decretadas no início da pandemia, em março. Em geral, os estabelecimentos permanecem abertos, mas com restrições de público. Cabe às prefeituras implantarem medidas mais rígidas para conter a doença. O estado intervém apenas se, após três semanas, as regras adotadas pela região não baixarem os números.
Nesta sexta-feira (27), a Prefeitura de Criciúma, no sul catarinense, decretou situação de calamidade pública diante do aumento de casos e lotação dos hospitais. A cidade de cerca de 217 mil habitante tem 1.321 residentes diagnosticados com o vírus neste momento.
Além do afrouxamento de regras pelo governo, especialistas apontam o comportamento dos catarinenses como um dos principais fatores que levou à explosão de casos de Covid-19 no estado.
“No início, as pessoas tinham vergonha de dizer que pegaram Covid-19 porque isso estava associado à falta de responsabilidade e ao descuido. Com o tempo, veio a fadiga, e essa relação mudou. Hoje, a visão é de que é algo mais inevitável, de que a vida não pode mais parar, e de que as pessoas não terão sintomas graves, então vale a pena correr o risco”, diz a psicóloga Andrea Steil, integrante de um grupo de pesquisa na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) que avaliou o comportamento de pessoas diante do distanciamento social.
O levantamento apontou que, entre março e setembro, caiu o índice de catarinenses que estão seguindo à risca o distanciamento social –eram 96% e passaram para 78%.
“As pessoas recebem informações conflitantes e acabam optando por seguir suas crenças iniciais. O coletivo depende do engajamento e do comportamento individual, então as regras, sozinhas, não vão dar conta, têm que vir seguidas de comportamento empático”, diz Steil.
Para o cientista político da Univali (Universidade do Vale do Itajaí), Eduardo Guerini, o comportamento também é consequência da posição do governo. “Houve o relaxamento das medidas de contenção de aglomerações, especialmente durante os feriadões, pela pressão evidente do setor econômico que sobrevive de eventos e turismo.”
A vice-governadora Daniela Reinehr (sem partido), que assumiu a gestão temporariamente, defende a liberação das atividades e gerou protestos ao aprovar o retorno às aulas presenciais na rede pública estadual em áreas de risco grave para Covid-19.
“O lema da governadora era ‘Santa Catarina não pode parar’ e ela assume a postura negacionista do governo federal”, diz Guerini. “De um estado referência nós nos transformamos num péssimo exemplo para o país”.
No início do mês, Reinehr foi diagnosticada com Covid-19 após participar de um evento com o presidente Jair Bolsonaro, em Florianópolis. Ela chegou de máscara no encontro, mas a retirou posteriormente, já que outras autoridades, incluindo o presidente, não usavam a proteção.
Apesar de admitir que o exemplo de algumas autoridades tem impacto na prevenção ao vírus, a superintendente de vigilância em saúde de Santa Catarina, Raquel Bittencourt, defende que o principal fator de risco está nas ações do “cidadão comum”.
“O domicílio de cada um não pode ser alvo de regramento. Não entramos nas residências das pessoas, mas podemos e devemos recomendar restrições, que é o que temos feito”, diz. Segundo ela, o estado está estudando uma estratégia nova de comunicação diante da preocupação de novas aglomerações com as festas de final de ano e com o verão.
Um pedido de “socorro” partiu também do Conselho de Secretarias Municipais de Saúde de Santa Catarina, presidido por Alexandre Lencina Fagundes. “Estamos numa situação delicada. Os dados não são bons e, se continuar assim, não há estrutura do sistema de saúde. Temos que agir nesse momento e contar com a colaboração da sociedade.”
FONTE: NSC – Diário Catarinense – 28/11/2020
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